Paulo VI
No centenário do nascimento

"O nosso nome
é Pedro"

Um famoso vaticanista repercorre a vida
de Giovanni Batista Montini, as suas origens
culturais, as relações com Roncalli, futuro Papa João XXIII.
O pontificado marcado pela dupla fidelidade,
à Tradição e aos apelos do mundo moderno

Giancarlo Zizola


     As iniciativas científicas do Instituto Paulo VI de Brescia (Norte da Itália) e as pesquisas históricas paralelas favoreceram, com uma mais profunda escavação arquivista, uma abordagem mais fundada e precisa na complexidade da figura de Paulo VI, cuja recorrência do centenário de nascimento (em Concesio, Brescia, dia 26 de setembro de 1897) oferece a oportunidade de uma revisão e, ao mesmo tempo, de uma recapitulação, espera-se, livre das controvérsias emotivas.

Giovanni Battista Montini muito jovem nutriu-se do fermento de um catolicismo reconciliado com a democracia. Tornou-se assistente da Fuci na época do conflito com o fascismo, traduziu Maritain, atuou como ponte na Secretaria de Estado entre o Papa e os elementos mais dinâmicos da intelligentzia católica européia, até quando Pio XII, cedendo às pressões do "Partido Romano", exilou-o como arcebispo em Milão

     Um critério emergente e consolidado na historiografia montiniana é o do catolicismo democrático, simétrico à outra categoria sintética, do reformismo prudente, onde a prudência, retomando um dito do cardeal Siri, "em qualquer caso aconselha a audácia, exclui somente a temeridade". Filho de um jornalista que se tornou deputado pelo Partido Popular (do qual se originou a Democracia Cristã) de Dom Sturzo, Giovanni Battista Montini muito jovem nutriu-se do fermento de um catolicismo reconciliado com a democracia. Foi assistente da Fuci (Federação Universitária Católica Italiana) na época do conflito com o fascismo, traduziu Le trois reformateurs de Jacques Maritain, atuou como ponte na Secretaria de Estado entre o Papa e os elementos mais dinâmicos da intelligentzia católica européia, até quando Pio XII, cedendo às pressões do "Partido Romano" (lobby eclesiástica conservadora), foi induzido a exilá-lo como arcebispo de Milão.
     Que a decisão papal de privar-se do seu substituto estivesse em orgânica relação com a ofensiva produzida pelo "Partido Romano", no início de 1954, é fora de qualquer dúvida devido à documentação já conhecida que o atesta.

A nota escrita pelo padre Riccardo Lombardi sobre as intenções daquele grupo de conseguir "tirar o poder de Montini na política italiana e dar este poder a Tardini (Fanfani se refere a Montini)" comprovou suficientemente a gênese de uma operação político-eclesial, que visava obstar a abertura a esquerda, considerada um esmorescimento na ordem dos princípios às forças marxistas no governo da Itália, mesmo pagando o preço da autonomia política dos católicos militantes na Democracia Cristã (cf. Giancarlo Zizola, Il microfono di Dio, Pio XII, padre Lombardi e i cattolici italiani, Milão 1990, pág. 348ss.). Neste âmbito a expulsão de Montini da Secretaria de Estado, publicada dia 3 de novembro de 1954, representava o apogeu de uma reorganização global que na primavera tinha solicitado as demissões do presidente da Giac (Juventude Italiana de Ação Católica), Mario Rossi, e a substituição desde 1952, o ano da "operação Sturzo" para as eleições administrativas de Roma, de Vittorio Veronese com Luigi Gedda no cargo de presidente geral da Ação Católica italiana.
     Quanto à cultura reformadora de Montini, pode valer muito bem, além dos abundantes dados oferecidos pelas pesquisas, a sua confidência a padre Lombardi, em 1950, sobre a necessidade de uma radical reforma espiritual do papado: "Privados do poder temporal, os Papas mantiveram apenas as formas exteriores, como o único aspecto que poderiam conservar. Feita a Conciliação [Pactos Lateranenses de 1929], aquelas formas permaneceram. Mas devem cair e, um Papa, um dia, pendurará o aquele manto. [...]. Que o Papa deixe o Vaticano e todos ali, com seus salários, e vá embora, ao menos por alguns períodos, para São João de Latrão: para viver com seus seminaristas, com seu povo, com um outro novo ritual... Volte ao Vaticano só de vez em quando. E, em São João, inicie o novo governo da Igreja, como o pobre Pedro..." (ibidem, pág.232).

     Por isso, não era acidental que Montini fosse, junto com Giacomo Lercaro, o único bispo italiano a propor para o Concílio um programa não medíocre de reformas, como provam os Atos pré-preparatórios do Vaticano II e a Storia del Vaticano II, no primeiro volume dedicado exatamente à gênese próxima e remota da assembléia convocada por João XXIII (cf. AA VV, Storia del Concilio Vaticano II, I, Il Mulino, Bolonha 1995).
     Nem poderiam ser reconduzidos somente aos aspectos da amizade pessoal, por mais rica e significativa que fosse, as ligações privilegiadas estabelecidas entre João XXIII, desde os tempos do seu patriarcado veneziano e mesmo antes, com monsenhor Montini: resta para ser aprofundado o diálogo do dia 15 de agosto de 1955 entre Roncalli e Montini, recém arcebispo de Milão, na casa de Roncalli em Sotto il Monte (Bérgamo). A lápide nas paredes de Cà Martino, em memória do encontro, informa que eles "estabeleceram um pressagioso diálogo sobre os destinos da Igreja". Estavam reunidos, naquela misteriosa hora, os dois futuros papas.

É certo, João XXIII soube criar rapidamente, depois da eleição, modos para uma plena reintegração do exilado no espaço simbólico do governo supremo, fazendo dele um dos seus mais próximos cardeais e confiando-lhe papéis determinantes na direção e reprogramação do Concílio. Assim, o arcebispo de Milão encontrou-se naturalmente a assumir nas próprias mãos uma herança que não poucos gostariam de ter visto desmantelada o mais cedo possível: uma herança pela qual o próprio Montini lutara, que consistia em agir de modo que a Igreja se dirigisse a todos os homens, além de todos os muros e todas as barreiras, sem confundir a causa do Evangelho com a de uma coalizão, mesmo sendo de povos livres, sem procurar o remédio fora da Igreja, nas alianças políticas, mas no mais profundo da sua tradição, na sua própria reforma, e no seu rejuvenescimento, abatendo os obstáculos entre os diversos "redis" de Cristo e preocupando-se em servir "o homem como tal, e não apenas os católicos, em defender em todos os lugares e antes de tudo os direitos da pessoa humana, e não apenas os da Igreja Católica", segundo as palavras testamentais do Papa João.
     Portanto, era responsabilidade de Montini, por essas antigas solidariedades, a tarefa de dar um quadro estratégico e uma realização gradual e consensual à brusca virada joanina, evitando riscos de rupturas.


Disto saiu as linhas principais do pontificado que o conclave de 1963 encoraja a assumir mas dentro de uma margem justificada pelas próprias tensões que marcaram este êxito: retomar e desenvolver o Concílio num quadro papal (sem excessos revolucionários já criticados por Montini na introdução de Le trois reformateurs), reforma prudente das instituições eclesiásticas, começando pela Cúria Romana, desenvolvimento do diálogo ecumênico, busca de novas relações entre Igreja e sociedade moderna, procurando todo o instrumento útil à preservação e à consolidação da sociedade cristã assediada pela secularização.
     A encíclica programática Ecclesiam suam (1964) desenhava a missão da Igreja segundo os três círculos: do diálogo comunitário interno, ecumênico com as Igrejas irmãs, pastoral e cultural com o mundo moderno.
     O Papa assumia no seu programa, no quadro institucional, a herança da "primavera" joanina e, ao mesmo tempo, as orientações do Vaticano II que na época apenas se esboçavam. Isso foi bem esclarecido pelo padre jesuíta Giacomo Martina, historiador da Igreja: "Provavelmente Montini não teria aberto o Concílio, mas naquele momento parecia o homem mais idôneo para concluí-lo [...]. Era considerado como a expressão mais prestigiosa do pensamento de João XXIII e, ao mesmo tempo, o homem capaz de realizar com audácia mas com maior ordem e método os ideais do Papa que recém falecera" (cf. G. Martina, Storia della Chiesa, da Lutero ai nostri giorni, IV: L'età contemporanea, Brescia 1995, pág. 318).

     A contribuição de Paulo VI ao Concílio foi objeto de diferentes avaliações. A prioridade concedida por ele à dimensão jurídico-institucional, de resto necessária para tornar efetivas as inovações conciliares, foi-lhe contestada pelos sacrifícios que teria solicitado - além do necessário - à dimensão querigmática e profética. Ele deu evidência à função primacial do papado na dinâmica do Concílio controlando os trabalhos deste Concílio e intervindo muitas vezes, tanto para reservar para si temáticas cruciais (o celibato sacerdotal, o controle da natalidade, a reforma da Cúria), como para arbitrar as relações entre a maioria e minoria mediante retificações de alguns esquemas no sentido redutivo, com o objetivo de favorecer a absorção do dissenso e conclusões mais consensuais possíveis.
     Com o motu proprio Integrae servandae de dezembro de 1965, véspera da conclusão do Concílio, ele procedeu à reforma do Santo Ofício, que cinco anos depois foi dotado de uma ratio agendi mais respeitosa dos direitos dos acusados à defesa.

A sua obra de reforma do aparelho central era inspirada pela convicção, expressa num discurso de 14 de julho de 1965, de que "precisa aprofundar a idéia da autoridade da Igreja, purificá-la das formas que não lhe são essenciais (mesmo se em determinadas circunstâncias lhe foram legítimas, como o poder temporal, por exemplo) e reconduzi-la ao seu original e cristão critério". Disso fez-se a criação de uma série de organismos novos, como o Consilium de laicis, a Comissão Iustitia et Pax, os Secretariados para os não-cristãos ou para os não-crentes, que se colocam ao lado do Secretariado para a União dos Cristãos, mediante o qual o Papa João tinha rompido, em 1960, o monopólio do Santo Ofício e encastoado o ecumenismo no coração do governo central da Igreja romana. Entre 1965 e 1968 o Vaticano de Paulo VI parecia um canteiro fervoroso de reformas, sustentadas por uma intensa obra educadora desenvolvida em primeira pessoa pelo Papa, para fazer com que o Concílio fosse compreendido por todo o "povo de Deus", além das fortes resistências de um núcleo hostil na Cúria Romana.

A contribuição de Paulo VI ao Concílio foi objeto de diferentes avaliações.
Ele deu evidência à função primacial do papado na dinâmica do Concílio controlando os trabalhos deste e intervindo, muitas vezes, tanto para reservar para si temáticas cruciais, como para arbitrar as relações entre a maioria e minoria

Dia 15 de agosto de 1967 a reforma geral da Cúria, decretada pela constituição Regimi Ecclesiae Universae, introduziu importantes modificações estruturais (recusa de carreirismos; limites de idade e temporalidade dos cargos; proibição do acúmulo de funções; decadência dos responsáveis supremos, na morte do papa; papel diretivo da Secretaria de Estado nos trabalhos dos dicastérios, sobretudo a recuperação de uma imagem mais espiritual e pastoral do serviço). A introdução dos limites de idade obrigava potentes personagens da velha Cúria, como Tisserant, Ottaviani e Pizzardo, a sair de cena. Pela primeira vez na liderança dos dicastérios centrais as responsabilidades eram confiadas a alguns pastores provenientes de Igrejas locais de vários continentes. O próprio secretário de Estado de Paulo VI, depois do falecimento do cardeal Amleto Cicognani, era um não-diplomático, o ex-secretário do episcopado francês Jean Villot, enquanto que o controle da estrutura era confiado a Giovanni Benelli, um jovem prelado do qual o Papa teve de privar-se em 1977, enviando-o como cardeal a Florença, cedendo as pressões de uma Cúria que não tinha apreciado o método de intrusão.

     Peça por peça, desaparece a forma sacra e real que envolvia o papado. A renúncia à tiara sobre o altar do Concílio introduziu uma série de modernizações exteriores, como a despedida dos guardas nobres, a simplificação da corte pontifícia, a dissolução dos corpos armados pontifícios, a própria reforma da diplomacia vaticana, confirmada como estrutura para ser todavia reconduzida - segundo um estilo tipicamente montiniano - a funções eclesiais, de serviço à comunhão entre o papado e as Igrejas locais. O próprio poder cardinalício foi tocado com o motu proprio Ingravescentem aetatem (21 de novembro de 1970) com o qual abolia-se o direito dos cardeais que tivessem cumprido 80 anos de participar à eleição do papa. Com a constituição Romano pontifici eligendo (1º de outubro de 1975) Montini fixou o teto de 120 cardeais para o corpo eleitoral.

A internacionalização do colégio cardinalício sob Paulo VI foi de tal grandeza que alterou a hegemonia tradicional dos italianos e dos europeus sobre o conclave: no final do pontificado, os cardeais eleitores não europeus eram tão numerosos quanto os cardeais europeus, com 12 africanos, 9 asiáticos, 21 latino-americanos, 3 da área do Pacífico e 10 norte-americanos. No colégio cardinalício modelado por Paulo VI, foram levados ao mínimo histórico os eleitores de Cúria e ao máximo a presença dos bispos residenciais, vindos de 30 nações diversas, prefigurando assim as condições institucionais para a eleição de um papa não italiano.
     Nas derivas pós-conciliares, especialmente na conjuntura da época de 1968, o reformismo montiniano pareceu bruscamente colocado em questão a níveis de solicitações mais incisivas, como as provenientes da Igreja holandesa. A crítica anti-institucional era acompanhada pela crise da instituição eclesiástica, com o abandono do ministério por parte de numerosos sacerdotes e religiosos, a decaída do associacionismo leigo, uma polarização crescente dentro da Igreja. Segundo o historiador Antonio Acerbi - que distinguiu o pontificado em diferentes períodos, assumindo a desculpa de 1968 - "o crescer tumultuado das novidades, não filtrado por uma reflexão adequada, o impacto fragoroso de mentalidades inconciliáveis, o estímulo das paixões coletivas, que marcavam o momento histórico, tocavam a sensibilidade do papa, ao qual eram psicologicamente alheios os novos fermentos sociais, o clima cultural da hora, as tensões internas da Igreja.


Reflexivo, circunspeto, sensível às nuanças do pensamento, cauteloso nas decisões, o papa concebia o diálogo numa atmosfera de tranqüila nobreza intelectual, levado por um encontro sobretudo espiritual. Disso vem o tom magoado, desiludido, ansioso de muitas palavras suas" (A. Acerbi, Il pontificato di Paolo VI, em Storia dei Papi, organizado por Martin Greschat e Elio Guerriero, Casa Editrice Cinisello Balsamo 1994, pág. 935).
     "'Papa da dúvida', assim ele efetivamente era diante de uma contestação que chegava a atingir algumas de suas convicções irrenunciáveis, entre as quais a de salvaguardar a todo custo o poder monárquico total, como existia antes dele e como ele sentia que devia preservar para depois dele, a disposição do sucessores" (J. Grootaers). Mas esta persuasão fundamental não era incompatível com a consciência da complexidade dos novos problemas que a Igreja enfrentava na nova idade dos direitos subjetivos e da democratização. Numa nota pessoal, escrita no decorrer de 1975, ele mesmo procurou definir-se: "O meu estado de ânimo? Hamlet? Dom Quixote? Esquerda? Direita?... Não me sinto diagnosticado" (cf. Pasquale Macchi, Discorso di commemorazione, no Notiziario dell'Istituto Paolo VI, 1, pág. 50). Talvez ele sugerisse, nos seus lentos procedimentos, um modelo de magistério que não podia refugiar-se sem mais nem menos na definição e reprodução das certezas tradicionais em vista de uma pretensão unificadora e deduzível da inédita complexidade da sociedade moderna e da própria Igreja. Nisso, a sua natural hesitação psicológica podia aparecer antes o reflexo de uma problematicidade coerente com a cultura moderna, da qual ele era tão filho quanto o era do dogma. Essa se fazia ver nele quando colocava em tensão o seu ser Pedro e o seu ser Paulo, a sua tarefa de conservar o passado e a outra, de procurar aquele novo, destinado a formar a tradição do amanhã.

     E, todavia, o Papa do diálogo manifestava a sua convicção que era preciso proteger as prerrogativas dogmáticas da função petrina da Igreja: um Pedro que se ajoelhava sobre o Santo Sepulcro em Jerusalém ou às margens do Lago Tiberíades, na primeira grande viagem de 1964 na Terra Santa, um Pedro que se prostrava para beijar os pés do metropolita Melitão, enviado pelo patriarca Atenágoras à celebração vaticana de 1975 pelo primeiro decênio da abolição das excomunhões entre Roma e Constantinopla, era o mesmo que na visita ao Concílio Ecumênico das Igrejas de Genebra em 1969 não hesitava em afirmar que: "O nosso nome é Pedro". O caso suscitado em 1970 pelo livro de Hans Küng Unfhlbar? Eine Anfrage, proporcionou a ocasião de uma intervenção severa da Congregação para a Doutrina da Fé na reafirmação da doutrina do primaz de 1870. Montini estava em primeira linha ao reivindicar "o poder pleno, supremo, universal do Romano Pontífice, poder que não pode ser reduzido a circunstâncias particulares" (Discurso à Secretaria do Sínodo dos Bispos, 14 de outubro de 1974).
     Um tal cuidado, manifestou-se sem equívocos, na questão da reforma em sentido colegial do governo pontifício. Já durante o Concílio, as reservas papais, manifestadas mediante a Nota praevia para contrabalançar as aberturas colegiais votadas pela assembléia, tinham revelado a vontade do Papa de reduzir a colegialidade a uma mística "colegialidade afetiva", isto é, a uma forma subalterna de assistência a uma monarquia pontifícia que não suportava naquele momento alguma restrição.

Geralmente, ele sustentava a via de "transformações audaciosas, de reformas urgentes", para a solução dos problemas de subdesenvolvimento global, reivindicando o princípio de que "o supérfluo dos países ricos deve servir aos países pobres" também para evitar que "a cólera dos pobres insurja sobre a avareza dos ricos"

A própria instituição do sínodo dos bispos, com o Concílio ainda aberto, dia 25 de setembro de 1965, comportava o limite de uma sua subjeção "direta e imediata" à autoridade pontifícia e de uma sua função normalmente apenas consultiva. O mesmo sentido da imprescindibilidade do poder pontifício acompanhava a política ecumênica de Paulo VI, mesmo se isso não o impedia de acolher a fórmula das "Igrejas irmãs" com o Oriente ortodoxo e consentia à Comissão mista anglicano-católica de lançar em 1976 uma Declaração sobre a Autoridade na Igreja que reformulava em termos patrísticos as condições para uma aceitação do primado papal por parte de Canterbury. Todavia o ponto chave da reestruturação colegial do primado parecia tão bloqueado a ponto de motivar a tomada de posição do primaz da Bélgica, cardeal Suenens que, numa clamorosa entrevista em 1969, observou que o sínodo naquela versão era "uma caricatura da colegialidade", uma crítica insolente, que relevava a descomposição do bloco progressista protagonista das reformas do Concílio.

     Mas aquela aliança já tinha revelado a sua fragilidade com a crise que se deu depois da publicação da encíclica Humanae vitae de 1968. Dois anos mais tarde, emergia com virulência uma contestação antipapal de marca conservadora, interpretada pelo bispo integralista Marcel Lefebvre. Não podendo aceitar o comprometimento da autoridade e a recepção integral do Concílio, que Lefebvre continuava a considerar "cismático", o Papa decidiu em julho de 1976 declarar suspenso a divinis o bispo rebelde de Écône, consciente de que os manipuladores do caso ocultavam-se no interior da Cúria Romana.
     Era um epílogo paradoxal da inteira estratégia compromissória com a qual Montini tinha procurado conter as explosões pós-conciliares num álveo finalmente romano. O Ano Santo da Reconciliação, proclamado em 1975, viu a sua extrema tentativa de relançar o espírito do Concílio para retomar o controle de um anticonciliarismo desordenado, que Roma conseguia governar com muitas dificuldades. Podiam-se perceber, desde então, não apenas as rachaduras na solidariedade entre as correntes reformistas que tinham "feito" o Concílio, dividindo-se depois numa corrente moderada e outra radical, mas também a própria fragilidade da hipótese reformista fundada no compromisso institucional, numa cultura católica que só parecia capaz de sublimar a forma da societas christiana, livrando-a do antimodernismo e dos resíduos iliberais da supremacia teocrática sobre a sociedade moderna.

Não a caso, foi precisamente o teórico da adaptação democrática daquela "sociedade cristã" Jacques Maritain, quem assumiu no pós-concílio, com o Paysan de la Garonne, a inquietude difusa pela precipitação da crise da Igreja naquele lado do diálogo com a modernidade no qual o Vaticano II tinha cumprido um dos seus esforços inventivos mais significativos.
     Não há dúvidas que o pontificado de Paulo VI registrou desenvolvimentos e acelerações mesmo teóricas precisamente neste lado político. No discurso às Nações Unidas, em Nova Iorque, dia 4 de outubro de 1965, ele apresentou-se às nações como o porta-voz não de um poder religioso mas de uma Igreja "perita em humanidade", disposta a oferecer um patrimônio ético bimilenário para ajudar a busca da paz, da justiça e da segurança mundial. Na viagem a Bombaim, em 1964, ele tinha acentuado o serviço aos povos subdesenvolvidos, a favor dos quais tinha proposto aos governos, sem ser ouvido, devolver uma mínima cota dos balanços militares.

Nos anos seguintes, o Papa alcançou em outras viagens, Bogotá, Campala e Manila, com etapa, em 1970, em Hong Kong, de onde ele lançou um convite ao diálogo à China de Mao Tse-tung
     No panorama internacional, Paulo VI reelaborou com significativos desenvolvimentos a linha da "neutralidade ativa" proposta por João XXIII. As posições pontifícias, críticas para com o prosseguimento da guerra americana no Vietnã, foram apresentadas sem reticências pelo Papa em dramáticas audiências aos presidentes americanos Johnson e Nixon. As iniciativas no plano diplomático e no plano da opinião pública para fazer cessar a guerra, e de qualquer modo separar a Igreja Católica dos interesses estratégicos dominantes no Sudeste asiático, não provocaram algum êxito imediato. A tentativa feita pelo Papa, em 1965, de impedir um bombardeamento americano sobre instalações nucleares chinesas não foi conhecida senão mais tarde: mas aquela impotência do papado no Ocidente era o testemunho de uma função crítica adotada para preservar a universalidade da Igreja no seu serviço a todos os homens e a todos os povos, e em primeiro lugar àqueles que são vítimas da injustiça.
     Papa "político", Montini nutria uma fé indiscutível nos instrumentos da razão prática.


Na sua ação pela paz no Vietnã ele preferia indubitavelmente os instrumentos da diplomacia aos da profecia, segundo uma injúria que lhe foi dirigida pelo cardeal Lercaro. Com a Ostpolitik, interpretada pelo monsenhor Agostino Casaroli, Paulo VI conseguirá arrancar dos regimes comunistas da Europa Centro-oriental uma série de modus vivendi que, além das relativas vantagens imediatas, comportavam ao menos o reconhecimento formal da parte comunista, de que também as religiões têm direito a estatutos públicos. Apesar das oposições de alguns setores católicos, temerosos de que aproximações de ordem prática pudessem arrastar concessões ideológicas, o Papa prosseguiu sem incertezas a linha do diálogo. Ele obrigou o cardeal Mindszenty a abandonar o seu exílio voluntário na embaixada americana de Budapest, onde tinha se refugiado nos dias da revolta anti-soviética de 1956, e ofereceu a ele hospitalidade em Roma. Aceitou igualmente fazer a transferência de monsenhor Beran do exílio comunista na Tchecolováquia ao exílio em Roma, sacrificando-o, cardeal, no altar do entendimento com Praga pela normalização da vida da Igreja naquela República.

     A Ostopolitik de Paulo VI certamente alcançou o ápice com a decisão de fazer a Santa Sé participar como membro integrante da Conferência pela Segurança e a Cooperação na Europa. O Ato final de Helsinque que incluía os pedidos da Santa Sé com relação aos direitos de liberdade de consciência, de religião e de culto nos Estados membros, incluindo portanto a URSS e os países europeus com regime comunista, foi assinado em nome do Papa por Agostino Casaroli dia 1º de agosto de 1975. Este Ato não era apenas o êxito positivo de uma linha que soubera livrar-se da doutrina da "cruzada" e da contraposição, mas também o início de uma dinâmica de longo prazo, que teria insinuado em sistemas ideológicos fechados como o soviético, elementos de confronto, de contradição e de direito suscetíveis a conseqüências explosivas a médio e longo prazo: com efeito, uma perspectiva que, aberta por Paulo VI com dificuldades internas e elementos de incertezas inicialmente legítimos, teria sido levada ao amadurecimento por João Paulo II dez anos depois.
     Seguindo a adesão manifestada em 1971 ao Tratado de não proliferação de armas nucleares, o Papa Montini sugeriu às Nações Unidas com o documento A Santa Sé e o desarmamento de 1977 uma "estratégia de desarmamento" que incluía o acesso aos financiamentos internacionais para países que reduzissem suas despesas militares a objetivos sociais. Não apenas o empenho pela paz internacional mas também a inteira doutrina social da Igreja encontrou em Paulo VI um convicto fautor, contra a hipótese de abandono acenada por teólogos radicais.

Nos últimos anos do pontificado a crise da hipótese de sociedade cristã, à qual Montini estava ligado, foi percebida por ele com suficiente capacidade de prever para impor-lhe uma mudança de paradigma.
A encíclica Octogesima adveniens de 1971 reconheceu a perda de relevância histórica e de praticabilidade da tradicional estrutura teórica da Igreja em matéria política e social até declarar a renúncia à pretensão de fornecer respostas ultimadas e geralmente válidas aos problemas sociais

Com a encíclica Populorum progressio (26 de março de 1967) ele reabilitou o princípio bíblico da destinação universal dos bens, distanciando-se de uma interpretação liberalista e individualista da propriedade privada. Os caminhos de insurreição revolucionária não encontraram o favor do Papa, que os considerava fomentos de "novas injustiças, novos desequilíbrios". Todavia ele admitia, seguindo Santo Tomás, a exceção de uma tirania "evidente e prolongada". Geralmente, ele sustentava a via de "transformações audaciosas, de reformas urgentes", para a solução dos problemas de subdesenvolvimento global, reivindicando o princípio de que "o supérfluo dos países ricos deve servir aos países pobres" também para evitar que "a cólera dos pobres insurja sobre a avareza dos ricos". Uma aplicação significativa da prudência pontifícia acerca dos métodos revolucionários podia-se perceber na espera mantida pela Santa Sé para com os movimentos de libertação das colônias portuguesas na África: a audiência papal do dia 1º de julho de 1970 aos líderes destes movimentos foi resfriada para não perturbar as relações com Portugal, embora fosse conhecida a relutância de Montini para com o regime salazarista e a sua vontade de livrar-se da hipoteca do velho protetorado civil da Igreja e, em particular, da nomeação dos bispos.

     Nos últimos anos do pontificado a crise da hipótese de sociedade cristã, a qual Montini estava ligado, foi percebida por ele com suficiente capacidade de prever para impor-lhe uma mudança de paradigma. A encíclica Octogesima adveniens (14 de maio de 1971) reconheceu a perda da relevância histórica e de praticabilidade da tradicional estrutura teórica da Igreja em matéria política e social até declarar a renúncia à pretensão de fornecer respostas ultimadas e geralmente válidas aos problemas sociais. Teve enormes repercussões a admissão de que, "diante de situações tão variadas, é-nos difícil pronunciar uma palavra única, como propor uma solução que tenha valor universal.

Esta não é a nossa ambição e nem mesmo a nossa missão. É dever das comunidades cristãs analisar com objetividade a própria situação do seu país, esclarecer à luz das palavras inalteráveis do Evangelho, extrair princípios de reflexão, normas de juízo e diretivas de ação no ensinamento social da Igreja como elaborou-se no decorrer da história [...].Cabe a essas comunidades cristãs discernir, com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos responsáveis, em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém assumir para atuar as transformações sociais, políticas e econômicas que resultam necessárias em muitos casos com urgência". Esta encíclica levou também à superação das fórmulas integralistas da presença política dos cristãos, sublinhando que "precisa reconhecer uma legítima variedade de opções possíveis" e que "uma mesma fé cristã pode conduzir a empenhos diferentes".

     Às enunciações teóricas correspondia, com efeito, um processo de secularização mais precipitado e devastador do que o previsto, que fragmentava dia a dia a perspectiva de uma "sociedade cristã". Entre a surpresa dos católicos, pouco avisados do devir da história (cf. G. Martina), o referendo pela ab-rogação da lei sobre o divórcio na Itália que o dia 12 de maio de 1974 mostrou que 59,1% dos italianos era favorável a permanência da lei, e que 40,9% contrários. Como teria confirmado o êxito do referendo sobre a lei do aborto em 1981, a cristandade na Itália estava no crepúsculo, embora a hierarquia, encorajada pelo Papa, continuasse a sua batalha com repetidas chamadas ao clássico sentido cristão. O próprio Paulo VI empenhou-se nestas tentativas de contenção, com suas intervenções sobre as Acli (Associação cristã de trabalhadores italianos), que tinham decidido assumir "a escolha de campo socialista", e sobre as candidaturas de personalidades católicas nas listas do Partido Comunista italiano.


Se nestas tentativas aparecia a preocupação do Papa pelo funcionamento dos instrumentos tradicionais de presença social da Igreja, a visão da totalidade dos acordos, das concordatas e de outros instrumentos sob o pontificado de Paulo VI indica facilmente que a Santa Sé reconhecia oficialmente o fim da cristandade, com todos os seus aspectos ambivalentes, aceitando a renúncia aos seus antigos privilégios, o princípio cardeal da liberdade religiosa, o esgotamento da "religião católica como religião de Estado" mesmo em países católicos como a Espanha, Portugal e a Itália.
     A exortação apostólica Evangelii nuntiandi, fruto do sínodo de 1974, representava o êxito de uma busca no interior da crise de formas de cristandade. O Papa esboçava no documento, uma figura de Igreja livre dos cuidados e dos vínculos do poder político, empenhada no inerme anúncio do Evangelho, a todas as gentes, como extrema e única sua tarefa "às vésperas de um novo século, às vésperas também do terceiro milênio de cristianismo". Como já ocorrera na sua viagem em Uganda, durante a qual ele profetizara o desenvolvimento de um cristianismo "autenticamente africano", assim ele previa, para o fim do pontificado, uma pluralidade de formas cristãs emergentes além da forma ocidental já esgotada como forma universal.
     Até o seu final, Paulo VI encontrou dificuldades por parte de camadas influentes do sistema eclesiástico em segui-lo sobre este percurso.

Os próprios meios e as linguagens da diplomacia apagaram-se em suas mãos quando, na Carta às brigadas vermelhas (grupo terrorista italiano) de 21 de abril de 1978, ele fez o pedido para que libertassem "sem condições", o presidente da Democracia Cristã, Aldo Moro que tinha sido seqüestrado por eles.
     A análise deste pontificado parece autorizar a conclusão indicada pelo historiador Roger Aubert, segundo o qual "se Paulo VI não conseguiu realizar plenamente o ideal que se tinha pré-fixado, de uma dupla fidelidade à Tradição e aos apelos do mundo moderno, [...] todavia, ele transformou a Igreja profundamente". À sua morte ocorrida dia 6 de agosto de 1978, foi colocado apenas o livro dos Evangelhos, aberto, sobre o féretro nos funerais da Praça São Pedro: impressionante simplicidade pública de um sumo poder religioso, circundado na sua pobreza exterior pelas representações de quase todos os Estados presentes para os funerais. Talvez a extrema mensagem de um Papa que quis, de qualquer modo, renovar a imagem do papado.