CAPA |
Quem e quantos são os Doutores da Igreja. Teresa de Lisieux é a terceira mulher que recebe este título, e é a doutora mais "jovem" na história da Igreja, quer porque se comemora apenas o centenário da sua morte quer porque morreu com apenas 24 anos |
Domingo,
19 de outubro, Dia Mundial das Missões, Santa Teresa de Lisieux é proclamada doutora da
Igreja universal. É a terceira mulher a receber este título, e é a doutora mais
"jovem" na história da Igreja tanto por ter passado apenas 100 anos da sua
morte como porque morreu com apenas 24 anos.
Com
ela, o número total dos Doutores da Igreja sobe a 33. Destes, sete pertencem à Igreja do
Oriente, 25 à Igreja Latina. Um número que compreende santos de todas as épocas. Mas
para quem e com quais bases é conferido este título?
O termo
é de origem apostólica. São Paulo, na Carta aos Efésios, elencando os vários carismas
presentes na Igreja, afirma: "E ele [Jesus Cristo] é quem concedeu a uns ser
apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores, [...]
para a edificação do Corpo de Cristo" (Ef 4, 11). Os elementos característicos que
identificam o doutor são a santidade e a ortodoxia, o consensus Ecclesiae e de modo
específico uma reflexão teológica eminente.
Agostinho |
Padres e Doutores
na Alta Idade Média
Nem todos os Padres da Igreja, por exemplo, são Doutores. Na cristandade
medieval, o título era estreitamente reservado aos que, entre eles, tinham brilhado de
modo particular por riqueza de doutrina e de ciência. A primeira lista que conhecemos é
a escrita no século VIII pelo monge Beda, o Venerável. Ele cita os nomes de Ambrósio,
Agostinho, Jerônimo, Gregório Magno da Igreja Latina, aos quais o monaquismo medieval e
toda a cristandade aproximavam os quatro Padres da Igreja do Oriente: Basílio, Gregório
de Nazianzo, João Crisóstomo e Atanásio. Este último, caro aos latinos pela estrênua
defesa do Credo de Nicéia contra Ario, não é todavia considerado pelos gregos entre os
grandes Doutores como os outros três. A Idade Média, em particular a tradição
monástica, muito ligada ao ensinamento dos Padres dos primeiros séculos, jamais teria
ousado aumentar a lista. Esta permaneceu tradicionalmente inalterada até a idade moderna.
Mas a
partir do século XVI a Igreja iniciou a proclamação de novos Doutores, escolhendo-os ao
início também entre os santos teólogos da Idade Média. A proclamação deles tornou-se
um ato formal, não mais sancionado pelo simples consensus Ecclesiae, mas por um decreto
oficial de um Concílio ou do Sumo Pontífice. Depois do Concílio de Trento, no qual a
doutrina e a autoridade de Tomás de Aquino foram determinantes assim como a dos Padres, o
Aquinate foi solenemente acrescentado ao número dos Doutores por São Pio V. Com a Bula
Mirabilis Deus do dia 1° de abril de 1567, o Pontífice conferia-lhe as mesmas honras
litúrgicas dos quatro grandes Padres latinos da Igreja antiga. Na realidade, com isso Pio
V não fazia nada mais do que acolher e estender à Igreja universal uma veneração que
na Ordem Dominicana já existia desde 1368. Ao nome de Tomás, que já era chamado há
tempos de doctor angelicus, Sixto V quis colocar, poucos anos depois, o nome do doctor
seraficus da Ordem Franciscana, Boaventura de Bagnoregio. Ao conferir o título aos dois
grandes teólogos medievais a Igreja reconhecia oficialmente a contribuição
enriquecedora da Escolástica à reflexão teológica.
Do
século XVIII em diante, a conferiçãoo título fez-se dia a dia mais freqüente. A
proclamação configurou-se muitas vezes como extensão de um culto local, como o de
Isidoro de Sevilha para a Espanha, ou justamente de uma Ordem religiosa, como para
Bernardo de Claraval. Todavia todos esses santos continuavam a pertencer à antigüidade
latina (Hilário, Pedro Crisólogo, Leão Magno, Isidoro) e à Idade Média (Anselmo
d'Aosta, doctor marianus, Bernardo, doctor mellifluus e Pier Damiani).
Ambrósio |
Os Doutores
da época moderna
Foi Pio XI quem conferiu pela primeira vez o título a dois santos da
época moderna: Afonso Maria de'Liguori, doctor zelantissimus, estudioso de teologia
moral, elevado a doutor da Igreja em 1871, e Francisco de Sales, proclamado doutor em
1877. O sucessor de Pio IX, Leão XIII, para demonstrar uma especial consideração às
Igrejas separadas do Oriente, incrementou a lista, inserindo nela Cirilo de Jerusalém,
Cirilo da Alexandria e João Damasceno, todos pertencentes à Igreja do Oriente do I
milênio. A preparação deste ato, pelo seu caráter prevalentemente litúrgico, foi
confiada à Sagrada Congregação dos Ritos. A esses nomes, Bento XV acrescentou o
diácono sírio Efrém, proclamado doutor em 1920. Efrém, que viveu no século IV,
compôs numerosos comentários bíblicos e sobretudo hinos, na língua nativa, o sírio,
para que o povo pudesse cantá-los e assim conservar a fé católica permanecendo imune ao
arianismo.
Pio IX
proclamou outros quatro Doutores: um medieval, Alberto Magno, conhecido como doctor
universalis, e três de época moderna: João da Cruz, Pedro Canísio e Roberto
Bellarmino. Com o primeiro o Pontífice introduziu, novidade absoluta, entre os Doutores
"modernos" não um verdadeiro e próprio teólogo mas um místico; com os outros
dois, defensores da ortodoxia no tempo da Reforma Protestante, entraram pela primeira vez
no elenco dois respeitáveis representantes da Companhia de Jesus.
Santo
Antônio de Pádua foi proclamado doutor por Pio XII no dia 16 de janeiro de 1946. Ao seu
favor depunha uma longa tradição. É notícia certa que, depois da cerimônia da sua
canonização, o papa que então reinava, Gregório IX, cantou em sua honra a antífona O
doctor optime, reservada somente aos Doutores da Igreja. Com efeito, Antônio era doutor
em teologia, um dos primeiros da Ordem franciscana, estimadíssimo pelo Papa pela sua
pregação. Último entre os homens proclamados, foi o capuchinho Lorenzo de Bríndisi,
que viveu na época da Contra-Reforma e incansável pregador e difusor da Ordem na
Alemanha. Foi proclamado por João XXIII em 1959.
João Crisóstomo |
1970: as primeiras
"Doutoras da Igreja"
No dia 27 de setembro de 1970, Paulo VI estendeu pela primeira vez o
título de doutor da Igreja a uma mulher, Teresa D'Avila. Por este ato, que podia parecer
como uma ruptura com a Tradição, ele quis sublinhar que a sua escolha nascia do unânime
consensus Ecclesiae em torno da reformadora da Ordem Carmelitana. "Nós conferimos,
ou melhor: nós reconhecemos o título de doutor da Igreja a Santa Teresa de Jesus"
exordia o Papa na homilia da missa de proclamação do "doutorado" para a
"grande carmelitana". E ainda: "Acima dela, Teresa, a luz do título coloca
em evidência indiscutíveis valores que já lhe eram amplamente reconhecidos: a santidade
da vida, valor este que já fora amplamente proclamado, desde março de 1622 [Santa Teresa
morrera quarenta anos antes] pelo nosso Predecessor Gregório XV, na célebre
canonização, que, com a nossa Carmelita, inscreveu no álbum dos Santos Inácio de
Loyola, Francisco Xavier [...] e com eles Filipe Néri [...]; e coloca em evidência
igualmente 'a eminência da doutrina', em segundo lugar, mas esta especialmente. [...] O
sufrágio da tradição dos Santos, dos Teólogos, dos Fiéis, dos estudiosos lhe era já
assegurado: agora nós o convalidamos".
Consciente
da novidade absoluta que a proclamação de uma mulher de qualquer modo comportava, Paulo
VI acrescentava: "Santa Teresa D'Avila é a primeira mulher à qual a Igreja confere
este título de doutor; e este fato não acontece sem a lembrança da severa palavra de
São Paulo: Mulieres in Ecclesiis taceant: o que quer dizer, ainda hoje, como a mulher
não seja destinada a ter na Igreja funções hierárquicas de magistério e de
ministério. Seria então violado o preceito apostólico? Podemos responder com clareza:
não. Na realidade, não se trata de um título que comporte funções hierárquicas de
magistério".
Atanásio |
Sete
dias depois, dia 4 de outubro, o próprio Paulo VI procedia a elevar a doutora da Igreja
Catarina de Sena, que nunca tinha estudado teologia, e era até mesmo analfabeta. No
discurso pronunciado na ocasião o Papa observava: "O que diremos, portanto, da
eminência da doutrina de Catarina? Nós certamente não encontraremos nos escritos da
Santa [...] o vigor apologético e as audácias teológicas que distinguem as obras dos
grandes iluminados da Igreja antiga, tanto no Oriente como no Ocidente; nem podemos
pretender da não culta virgem de Fontebranda as altas especulações, próprias da
teologia sistemática, que fizeram imortais os Doutores da Idade Média escolástica.
Aquilo que, ao contrário, impressiona na Santa é a sabedoria incutida, isto é, a
lúcida, profunda e inebriante assimilação das verdades divinas e dos mistérios da fé
[...]: assimilação evidentemente prodigiosa, devida a um carisma de sabedoria do
Espírito Santo [...]".
Assim,
também a pequena Teresa do Menino Jesus, que pouco estudou teologia, mas que com seus
escritos há cem anos guia muitíssimos cristãos em todo o mundo - isto é testemunhado
pela enorme difusão da História de uma alma no nosso século - podem-se atribuir as
palavras da bula de canonização da santa senese escrita por Pio II: "Doctrina eius
non acquisita fuit; prius magistra visa est quam discipula" (A sua sabedoria não foi
conquistada; e ela parece mestra ainda antes de ser discípula).