R e p o r t a g e m   d o   C h i a p a s
O   e n c o n t r o   c o m   J e s u s   C r i s t o   e    o   g r i t o   d o   p o b r e


ACTEAL

A maior tragédia
de inermes em oração


No México está sendo construída uma igreja no local onde foram assassinados 45 índios enquanto rezavam. A ação dos assassinos depois de uma série de violências, intimidações e abusos aos quais foram submetidas estas comunidades por parte do exército e dos latifundiários

Gianni Valente

 

Mulheres rezando no lugar da tragédia.

     Ainda estão aqui os mártires de Acteal. Foram sepultados juntos, duas filas de corpos num leve declínio aterrado. As rajadas ensurdecedoras e os golpes de machete com que os enfurecidos procuravam as crianças, as mulheres e os homens inermes em fuga pela floresta, chegaram até a reduzir parte da vegetação, tornando mais escabroso o pedaço de terra onde agora repousam, uma ao lado da outra, as vítimas do maior massacre de cristãos em oração que a história recente possa lembrar. Agora, nos dizem, naquele local impérvio surgirá uma igreja. Já trouxeram, em procissão, os primeiros tijolos vermelhos.
     Era o dia 22 de dezembro, e os índios despejados em Acteal estavam reunidos há dois dias juntos, em jejum e oração no casebre de madeira e lata que servia de igreja. "Rezávamos o rosário para nós, para as nossas vidas, para pedir a Deus e a Nossa Senhora a paz para o povo", conta o catequista Augustin, um dos sobreviventes. Há meses, as montanhas em volta do Chenalhó, a poucas dezenas de quilômetros de San Cristóbal, estavam tomadas pelo vento de violência e terror que nos últimos anos abateu-se sobre as comunidades indígenas do Chiapas. Um estilicídio de vinganças, represálias, homicídios, saqueios, uma estratégia de guerra a "baixa intensidade" feita com controle militar e ações sujas confiadas aos grupos paramilitares, para enfraquecer e aterrorizar as populações protagonistas desta insurreição indígena que desde 1994 mantém o regime mexicano em alerta. Sabia-se que na zona tinham entrado em ação equipes paramilitares, por isso os inermes camponeses de Acteal se puseram a rezar para serem poupados da violência.
     Os carnífices chegaram pela floresta, subindo do fundo do vale, todos com uniforme azul escuro e com o rosto coberto. Os projéteis a alta potência que usavam ainda são visíveis, encravados na madeira da igrejinha-cabana. "Esquartejaram com machetes também quatro mulheres grávidas", prossegue Augustin, "e algumas crianças se salvaram pois ficaram embaixo do corpo de suas mães assassinadas".

Militares perscrutando um vilarejo indígena. No Chiapas já estão presentes 40 mil soldados com funções antizapatistas

     Todavia Acteal não tem cheiro de morte. Não há nem mesmo a desolação que se respira lá embaixo no vale, em Chenalhó, presidida pelos militares, onde tudo parece ter parado, também a igreja está abandonada e o pároco, ameaçado de morte, é obrigado a se esconder. Aqui, entre as barracas que escaparam do assalto, ao longo das trilhas intransitáveis e escorregadiças, os amigos e os parentes dos mártires continuam a viver, a trabalhar, a rezar, como todos os dias. O que há de maior neste lugar impérvio, que se tornou sacrário onde chegam em peregrinação jornalistas, fotógrafos e militantes de todo o mundo entusiasmados pela causa da insurgência zapatista, é justamente esta vida quotidiana alegre, dentro das dores e das feridas destes tempos difíceis que as filmadoras não podem interceptar. Talvez seja esta a doação que os mártires de Acteal já estejam fazendo aos seus amigos, aos que ali ficaram. Às cinco da tarde, todos os dias, toda a comunidade se encontra para rezar em volta de um pequeno altar, uma mesinha de madeira com cruzes e velas, a poucos passos do lugar onde estão sepultados os 45 assassinados. O catequista chama, e das grutas, do bosque, das barracas, eles aproximam-se. Um de cada vez, cada dois, em pequenas turmas conversando. Adolescentes, homens silenciosos, meninas com irmãozinhos pequenos em muchilas, nas costas, e mulheres com seus vestidos de cores vivas. Espera-se pelo menos meia hora os que se reúnem atrasados, entre uma confabulação familiar e os jogos enlameados dos menores. Depois, ao sinal do catequista, todos colocam-se ajoelhados na vermelha terra lamacenta, as mulheres cobrem a cabeça com o véu e ajoelhadas rezam o rosário. Ao terminar as orações, levantam-se, comprimentam-se, alguns ficam conversando, outros voltam para suas coisas.

À esquerda, o casebre onde rezavam os índios desalojados de Acteal no momento que foram assassinados. No lugar do massacre será construída uma igreja. Os amigos das vítimas já trouxeram em procissão os primeiros tijolos (foto à direita)

     Mais no alto, próximo da estrada, Mariana brinca de roda com as crianças menores. É uma moça moreninha que vem da Cidade do México, uma militante de Enlace Civil, a organização não governamental que cuida dos "acampamentos da paz", proteções que surgiram nas proximidades dos vilarejos e dos campos de refugiados, onde voluntários mexicanos e estrangeiros trabalham para ajudar as comunidades indígenas e vigiam para impedir outros ataques paramilitares. Aqui em Acteal, pode-se rezar em paz também graças a este precário escudo humano.

O general e o Evangelho
de Marcos
"Acteal: crime de Estado", escreve sem hesitações La Palabra, boletim do Centro de Informações e análise do Chiapas. A distância de mais de um mês, a tragédia na igreja alguns dias antes do Natal, que as primeiras declarações governamentais tentaram passar como uma vingança tribal entre clãs rivais, continua a provocar sobressaltos em todo o sistema mexicano. Não se apagam as pressões internacionais e as manifestações de protestos em todo o mundo, enquanto que jornais e grupos de oposição continuam repetidamente a mostrar dados, indícios e provas certas da cobertura governamental aos grupos paramilitares. Não bastam os afastamentos e demissões nos vértices dos organismos estatais dados de bandeja à indignação emocional provocada pela tragédia. Pede-se a atuação do acordo de San Andrés que o governo central assinara junto com os representantes do Exército Zapatista de Libertação Nacional (Ezln), para depois colocá-los de lado e tentar o caminho da "solução militar" da insurgência do Chiapas.
     Mas por dentro de tudo isso, dentro dos contrastes de poder, dos saqueios, dos interesses geopolíticos e econômicos do mundo que estão hoje em jogo no Chiapas, Acteal é também a mais trágica manifestação da longa série de atentados, intimidações e violências recebidos por cristãos e a Igreja desta região. Atingidos porque sentiram, como disse o cardeal Aloísio Lorscheider no último Sínodo para a América e como toda a tradição ensina, que o grito do pobre que sofre é o mesmo grito de Jesus Cristo na cruz.
     Em San Cristóbal, Pablo Romo, o jovem e dinâmico dominicano que dirige o Centro para os Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas, fala de uma "estratégia de intimidação e de repressão da revolta indígena do Chiapas, onde mais de 70% da população, nas últimas eleições, seguiu o apelo de abstenção feito pelo Ezln, e apóia os pedidos de autonomia administrativa e de política social dos homens guiados pelo subcomandante Marcos, mesmo quando não compartilha a opção armada". Um regime, vinculado a Washington com um sofisticado tratado de cooperação comercial segundo os mais rígidos critérios da globalização neoliberalista, que queria se acomodar nos melhores lugares do capitalismo ocidental, é acusado de ter optado pela solução militar da crise no Chiapas, provocando uma escalation de violência que preparou o terreno à ação dos grupos paramilitares.

Uma menina com a sua mãe na saída da missa em La Realidad. No massacre realizado dia 22 de dezembro em Acteal por um grupo paramilitar foram trucidados 45 índios, e outros 25 ficaram feridos. Entre os mortos havia 15 crianças e 21 mulheres, das quais 4 grávidas

"Não posso acreditar", explica Romo, "que o governo tenha planificado diretamente o massacre. Mas há uma co-responsabilidade, por ter levado a esta situação de guerra a baixa intensidade, fruto da total inadimplência dos acordos de San Andrés, assinados em fevereiro de 1996 com os rebeldes zapatistas". Dentro das contínuas violências e agressões que abalaram a vida das comunidades indígenas, Romo enumera também os episódios cruentos que neste conflito atingiram diretamente os cristãos e a Igreja: "Um verdadeiro rosário de atentados: houve a agressão à irmã de Dom Ruíz Garcia, e depois, dia 4 de novembro, os projéteis disparados pelos paramilitares contra o cortejo de carros que levavam os bispos Ruíz Garcia e Vera López para Tila. Já foram fechadas 12 igrejas pelos grupos paramilitares, passionistas seqüestrados pela polícia, jesuítas torturados, missionários estrangeiros expulsos. O hospital de Altamirano recebeu ataques em continuação, e em dezembro de 1996 uma bomba molotov foi atirada contra a casa dos dominicanos em San Cristóbal. E também os incessantes atentados e ameaças de morte aos catequistas, aos sacerdotes, aos missionários". Uma ação violenta que foi preparada por uma campanha minunciosa de instigação ao ódio. Explica ainda Pablo Romo: "Por muitos anos descreveram os catequistas sacerdotes daqui como uma equipe de agitadores comunistas, chegaram até a acusar o bispo Ruiz García de tráfico de armas a favor da guerrilha. Em vez de se preocuparem pelas verdadeiras razões da revolta indígena, fizeram passar a idéia de que tudo era fruto de uma obra de instigação, fomentada pela Igreja. Uma guerra psicológica que criou desconcerto em muitas comunidades indígenas". No final, depois da tragédia de Acteal, o general chefe de todas as tropas governamentais do Chiapas apresentou como "provas" da ligação entre guerrilha e Igreja, a descoberta numa sede do Ezln de alguns textos publicados pela diocese de San Cristóbal. Tratava-se de um livro de cantos, de um catecismo que explicava o sacramento do batismo e a devoção ao santo rosário e de um Evangelho de Marcos traduzido em dialeto índio. Exatamente a homonímia entre o evangelista e o subcomandante que guia os zapatistas foi o que provocou o excitado interesse dos argutos militares, convencidos de ter em mãos prova de que a diocese publicava com imprimátur também os textos de doutrinação revolucionária. "Ao acontecer isso", continua Romo, "a mentira da propaganda foi revelada, e chegaram atestados de solidariedade de toda a Igreja mexicana, nas suas várias e diversas componentes. Se até o Evangelho é considerado como um manual de guerrilha...".

as exéquias das vítimas da tragédia de Acteal. Todas as noites, os índios que sobreviveram ao massacre rezam o rosário ajoelhados diante do lugar onde foram sepultados os amigos e os parentes.

Os filhos de Bartolomeu
Nos jornais pró-governo como o Nacional, órgão do Ministério do Interior, continua a obra de difamação sistemática da Igreja do Chiapas, dos seus bispos, dos catequistas. Nos escritos envenenados se manifesta um ódio antigo. Os bispos de San Cristóbal, Samuél Ruíz Garcia e Raúl Vera López são acusados de "fundamentalismo" e de "tentações teocráticas". A defesa que fazem dos índios seria até a causa da marginalização e da pobreza das comunidades indígenas, um obstáculo que os impedem de "integrar-se" no ciclo produtivo neocapitalista. O mesmo "erro teocrático" explicam "que os jesuítas fizeram no século XVII nas reducciones dos índios guarani e, ainda antes, Bartolomeu de Las Casas, o dominicano que foi o primeiro bispo de San Cristóbal que para defender os índios da opressão enfrentou os conquistadores e os eclesiásticos espanhóis que justificavam teologicamente os massacres e as violências em nome da 'cristianização' do Novo Mundo".

a cruz e a imagem da Virgem de Guadalupe indicam o lugar da sepultura

     Em anos passados, fulmíneas promoções premiaram teólogos e bispos que com isso ganhavam para si a fama de destruidores da Teologia da Libertação atacando Samuel Ruiz García e a escolha de campo indianista da diocese de San Cristóbal. Uma diocese com poucos padres - com bispos e sacerdotes acostumados a caminhar pela floresta - onde a vida cristã das pessoas das 2 mil comunidades indígenas é mantida graças à obra dos 7 mil catequistas índios e dos 200 diáconos índios consagrados. Foram descritos muitas vezes como perigosos liberacionistas, fautores de uma distorcida e semicismática pastoral indianista. Mas a fé que nos narra Alonso, o catequista de cara bondosa, é feita de poucas coisas simples, as coisas de sempre: querer bem a Jesus, rezar e pedir-lhe o bem para as próprias vidas. "Porque certamente, Jesus veio para estar com os pobres e os pobres somos nós". Alonso lia o Evangelho e guiava as orações dominicais na região de Los Chorros, próximo a Acteal. Chegou uma banda armada anti-zapatista, composta também por militares locais do partido do governo. Pediram uma "taxa de guerra" às famílias, e diante da recusa destas atacaram o vilarejo, saqueando as casas a e colheita de café. Agora, com a mulher e os dez filhos é hóspede junto com outros desalojados, numa casa de religiosas na periferia de San Cristóbal. Nas suas palavras e dos seus companheiros, nenhuma justificação da violência, nem mesmo da zapatista, porque, dizem, "Jesus não quer as armas, mas a paz e a justiça". Alguns deles preparam-se para ir em peregrinação à Virgem de Guadalupe, organizada pela diocese para pedir a Nossa Senhora aquela paz que Jesus prometeu aos pobres. Alguém escreveu sob a imagem da Virgem de Guadalupe, na sala de espera da cúria de San Cristóbal: "Mãe santíssima, Rainha do México, protege com o teu manto os nossos irmãos do Chiapas. Liberta-os do mal da injustiça".