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DOCUMENTOS. Para uma melhor distribuição da terra: o desafio da reforma agrária
"A terra foi dada a
todos e não apenas aos ricos"
(Santo Ambrósio)
O recente documento do Pontifício Conselho Justiça e Paz contra o latifúndio exprime posições corajosas quando repropõe os conteúdos da Tradição Gianni Valente |
Na página ao lado, uma camponesa de Bangladesh; acima, A peregrinação, de José Tiago, artista brasileiro |
"Não
é das tuas posses, afirma Santo Ambrósio, que doas ao pobre; tu não fazes senão
restituir-lhe o que lhe pertence. Pois aquilo que foi dado em comum para o uso de todos é
o que tu tomaste como posse. A terra foi dada a todos, e não apenas aos ricos". Era
o ano de 1967 quando Paulo VI na encíclica Populorum Progressio, repetia as palavras do
santo que fora seu predecessor na cátedra de Milão, para denunciar o roubo da terra,
forma primigênia de opressão do pobre que, como ensina toda a Tradição da Igreja,
"clama vingança diante de Deus". Há mais de 30 anos de distância, um
documento produzido por um dicastério vaticano volta a falar sobre alguns dos assuntos
enfrentados na grande encíclica social de Paulo VI.
Para
uma melhor distribuição da terra: o desafio da reforma agrária. Este é o título do
texto produzido depois de três anos de trabalho pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz,
apresentado no último dia 13 de janeiro pelo cardeal Roger Etchegaray, Presidente do
dicastério vaticano que se encarrega das questões sociais. Uma denúncia do latifúndio,
causa do crescente empobrecimento de grandes camadas da população nos países em
desenvolvimento, que segue documentos análogos publicados por numerosos episcopados dos
países latino-americanos, onde a questão agrária iniciada na metade do século passado
continua sendo o dado fundamental da exploração social.
A
estrutura do novo pronunciamento vaticano retoma o método de trabalho do ver-julgar-agir,
o esquema inaugurado na França pela Juventude Operária Cristã (JOC) nos anos Trinta e
retomado nas últimas décadas pelas Igrejas latino-americanas para enfrentar as questões
sociais, econômicas e políticas.
De
fato, a primeira parte é uma descrição detalhada e realista dos mecanismos de
concentração da propriedade de terras. São descritas as estruturas de exploração, as
conexões de poder político-econômico, os custos humanos, ambientais e econômicos
implicados no fenômeno. São avaliadas criticamente as escolhas de política econômica,
como a industrialização e a urbanização procuradas por etapas forçadas às custas da
agricultura, na ilusão de "modernizar", deste modo, as economias nacionais.
Entre os motivos da falência de tantas reformas agrárias suspensas, não se pode omitir
"a presença de importantes interesses estrangeiros preocupados com a reforma para as
suas atividades econômicas". E também a política de exportações agrícolas,
regulada pelos interesses das grandes empresas agro-alimentares, é descrita como motivo
de penalização dos pequenos produtores e para as economias de subsistência finalizadas
na maior parte das vezes ao auto-consumo e que são trituradas pelos mecanismos impiedosos
da globalização econômica.
Nesta
primeira seção, as passagens mais explícitas e incisivas estão concentradas no
parágrafo sobre a expropriação das terras das populações indígenas, onde estão
descritos cenários de trágica atualidade nas crônicas latino-americanas. "Na
maioria dos casos", está escrito no parágrafo 11 "a difusão das grandes
empresas agrícolas, a realização de empreendimentos hidroelétricos, a exploração dos
recursos minerais, do petróleo e das madeiras das florestas nas áreas de expansão da
fronteira agrícola foram decididas, planificadas e implementadas ignorando os direitos
dos habitantes indígenas". No parágrafo 12 são denunciadas as violências a que os
índios ainda são submetidos nos processos de acumulação de terra: "A élite
fundiária e as grandes empresas empenhadas na exploração dos recursos minerais e das
madeiras não hesitaram, em muitas ocasiões, em instaurar um clima de terror para abafar
os protestos dos trabalhadores, obrigados a ritmos de trabalho desumanos e remunerados com
salários que, muitas vezes, não cobrem as despesas de transporte, alimentação e
alojamento. O mesmo clima se tem instaurado para vencer os conflitos com os pequenos
agricultores que cultivam há muito tempo terras do Estado ou outras terras, ou para se
apropriar das terras ocupadas pelos povos indígenas.
Nestas
lutas utilizam-se métodos intimidatórios, provocam-se prisões ilegais e, em casos
extremos, pagam-se grupos armados para destruir os bens e as colheitas, para tirar poder
aos líderes das comunidades e livrar-se de pessoas como aqueles que assumem a defesa dos
fracos, entre os quais se devem recordar também muitos responsáveis da Igreja.
Os
representantes do poder público, muitas vezes, são diretamente cúmplices destas
violências. A impunidade aos executores e aos mandantes dos crimes é garantida por
deficiências na administração da justiça e pela indiferença de muitos Estados para
com os instrumentos jurídicos internacionais relativos ao respeito dos direitos
humanos". O documento vaticano tem a data do dia 23 de novembro de 1997, festa de
Cristo Rei. No dia 22 do mês seguinte, no vilarejo de Acteal, em Chiapas, um grupo
paramilitar contratado por grupos locais de poder, massacrava 45 católicos reunidos para
rezar o rosário numa cabana. Confirmando com a graça do martírio as palavras escritas
um mês antes pelo cardeal Etchegaray nos ofícios do dicastério da Praça São Calixto,
Trastevere, Roma.
São Tomás e a terra
aos camponeses
"Ai de vós, que ajuntais casas e mais casas e que acrescentais campos e
campos", grita Isaías. Repete o mesmo seu contemporâneo Miquéias: "Cobiçam
as terras e apoderam-se delas, cobiçam as casas e roubam-nas. Fazem violência ao homem e
à sua família, ao dono e à sua herança". Nas acusações dos profetas contra as
prevaricações dos ricos encontra-se a antiga raiz do juízo da Igreja sobre a
propriedade da terra, objeto da segunda parte do documento. Já o Antigo Testamento, com a
prática hebraica do Jubileu, é permeado com incessantes chamadas para reconhecer que a
terra é de Deus, e o homem não é o seu verdadeiro patrão, mas apenas um administrador.
"A terra é minha e vós sois como estrangeiros e inquilinos na minha casa" (Lv
25, 23). No cristianismo, a ilegitimidade do latifúndio não é mais apenas um dado da
origem da Criação, mas provém da preferência pelos pobres. Da histórica efetiva
preferência que toda a Tradição reconhece inscrita no próprio mistério da
predileção de Jesus Cristo pelos seus. As passagens mais eficazes e realistas do
documento são exatamente aquelas onde são repropostos os conteúdos e os ensinamentos da
Tradição, que desde sempre reconhece no grito do pobre oprimido o mesmo grito de Jesus
Cristo na cruz. É citada a Populorum progressio de Paulo VI para repetir que: "a
terra foi dada a todos e não apenas aos ricos", de tal modo que "ninguém tem o
direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta
o necessário".Também é reproposto o critério definido por Santo Tomás de Aquino,
e reafirmado pelo último Concílio Ecumênico, segundo o qual: "Aquele que se
encontra em necessidade extrema tem o direito de procurar o necessário para si junto às
riquezas dos outros". À luz destes ensinamentos, condenam-se "formas de
apropriação indevida da terra por obra de proprietários ou de empresas nacionais e
internacionais, às vezes apoiadas por organismos do Estado, os quais, pisando todos os
direitos adquiridos e, não raramente, até os títulos ligados à posse do solo, despojam
os pequenos agricultores e os povos indígenas das suas terras".
O novo
documento vaticano exprime juízos e posições socialmente corajosas e interessantes
exatamente nas passagens em que se limita a repropor na situação atual, os conteúdos e
os ensinamentos da Tradição, os mesmos já reafirmados em documentos do magistério
precedente, como a Populorum progressio. No entanto, perece tímido e obscuro nos
parágrafos onde, talvez com intenção de despertar credibilidade nos economistas e nos
responsáveis pela área, assume os critérios de juízo, fatalmente marcados pela
ideologia liberalista, hoje preponderante. Por exemplo, com relação à forma de
organização do sistema econômico, o documento vaticano declara legítimas também as
formas de exploração coletiva da terra como a propriedade comunitária, "que
caracteriza a estrutura social de numerosos povos indígenas". Mas depois corrige e
atenua este reconhecimento, acrescentando que modelos semelhantes estão destinados a
evoluírem: "Razões bem fundamentadas levam a prever, mesmo no caso dos povos
indígenas, o desenvolvimento de uma política de atribuição individual da propriedade
da terra". Uma fórmula soft para dizer que as comunidades indígenas, se não querem
ser marginalizadas e condenadas à miséria, devem passar ao regime de propriedade
individual e abrir-se ao livre mercado das terras, para integrar-se no ciclo produtivo
neo-capitalista.
Nas
passagens que se referem à propriedade privada o passo para trás, com relação às
posições expressas pela Populorum progressio, é mais premente. A hipoteca social que
pesa sobre a propriedade privada, afirmada como princípio, resta pura teoria ao enfrentar
casos concretos. Paulo VI, na Populorum progressio, junto com Santo Ambrósio, tinha
desmantelado o dogma da propriedade privada "inviolável", reconhecendo a
legitimidade das expropriações ("O bem comum exige algumas vezes a expropriação
se, devido à sua extensão, à sua exploração exígua ou nula... algumas posses são
obstáculos à prosperidade coletiva").
O desafio do sim... porém
Também o novo pronunciamento vaticano admite em linha teórica a legitimidade
das expropriações, "seguida de uma congruente indenização aos
proprietários". Mas sobre o caso mais controverso e de mais premente atualidade,
isto é, o das ocupações das terras que no Brasil e em toda a América Latina há anos
tornou-se um conflito social entre fazendeiros e trabalhadores sem terra, exprime-se uma
substancial condenação dos métodos dos movimentos dos sem terra, mesmo edulcorada com
uma linguagem ambígua de distinções e dos atenuantes sociológicos. Sob este ponto de
vista, este documento também é um indicador da mudança que se deu nos pronunciamentos
eclesiásticos destes vinte anos. Ao et...et católico, segundo o qual a aplicação
coerente de um princípio verdadeiro leva a ter em conta todos os fatores, substitui-se o
sim... porém da cultura moderada predominante na Igreja, por isso de fato, como neste
caso, abandona-se o princípio expresso claramente por Santo Ambrósio e por Santo Tomás
de Aquino e reproposto pela Populorum progressio. Segundo o pronunciamento vaticano, com
efeito, a ocupação das terras improdutivas, "mesmo quando provocada por situações
de extrema necessidade, continua a ser um ato não conforme aos valores e às regras de
uma convivência verdadeiramente civil. O clima de emotividade coletiva que gera pode
facilmente levar a uma sucessão de atos e de realizações tais que se coloquem fora de
qualquer controle. Os atos de instrumentalização que podem facilmente verificar-se têm
bem pouco a ver com o problema da terra". A esta conclusão segue-se a constatação
de que todavia a ocupação das terras "é um sinal alarmante que exige a atuação,
a nível social e político, de soluções eficazes e justas". Os governos que deixam
gangrenar as situações que estão em risco também são julgados co-responsáveis pela
degeneração dos conflitos sociais: "O retardamento e adiamento da reforma agrária
tolhem toda a credibilidade às suas ações de denúncia e de repressão da ocupação
das terras".
A
última seção do documento reafirma que a superação do latifúndio constitui apenas a
primeira parte de uma reforma agrária eficaz. Para que os resultados sejam efetivos e
duráveis, é preciso apoiar a redistribuição das terras com a garantia de acesso ao
crédito bancário, e depois com a criação de infra-estruturas que favoreçam a
produtividade agrícola e a comercialização dos produtos. As virtudes milagrosas da
liberalização das trocas comerciais são desmistificadas: "Em determinadas
condições, todavia, tal desenvolvimento pode também ter efeitos depreciativos sobre as
condições de vida daqueles que estão economicamente em desvantagem. Isto acontece, por
exemplo, se o aumento da produção agrícola para exportar leva a reduzir a oferta de
alimentos para o consumo interno e a aumentar os preços".