Santos sem o São

Oscar Romero


As três visitas que Dom Romero
fez a Roma, narradas no seu diário

"O diário é uma chave para entender a sua vida"

Gregorio Rosa Chávez

 

 

JUNHO 1978

 

Sábado 17

     As irmãs oblatas do Divino Amor estavam nos esperando, pois Madre Scaglietti, de San Salvador, avisara da nossa chegada, uma atenção que agradeço profundamente. Alojados no Pensionato Romano, depois de um pequeno repouso após o almoço, à tarde, fomos visitar a igreja de São Pedro. Junto ao túmulo do primeiro Papa rezei intensamente pela unidade da Igreja, pelo Papa, pelos bispos e por toda a Igreja universal, especialmente pela nossa arquidiocese: confiei a São Pedro os interesses da nossa Igreja e o bom êxito deste diálogo com a Santa Sé.

Domingo 18

     À tarde fomos visitar o túmulo de São Paulo na sua igreja fora dos muros. Era hora das vésperas e a Basílica estava totalmente iluminada. Ouvia-se o órgão que ressoava no ambiente e o coral dos monges que cantavam o gregoriano. Ajoelhado junto ao túmulo do apóstolo dos gentios, do grande São Paulo, naquele ambiente de oração, quase de céu, senti reviver na minha lembrança, no meu coração, no meu amor, todas aquelas emoções dos meus tempos de estudante e de quando, já sacerdote, visitei Roma. Foram minhas orações junto aos túmulos dos apóstolos que me deram inspiração e força. É assim sobretudo esta noite: sinto que a minha visita não é uma visita de piedade privada, mas que, ao cumprir a visita ad limina, trago comigo todos os interesses, as preocupações, os problemas, as esperanças, os projetos, as angústias de todos os meus sacerdotes, das comunidades religiosas, das paróquias, das comunidades de base, isto é, de toda a arquidiocese que comigo vem prostrar-se, ontem junto ao túmulo de São Pedro, hoje diante do túmulo de São Paulo.

Quarta-feira 21

     A audiência geral e a audiência especial com o Santo Padre preencheram esta inesquecível manhã. É o dia 21 de junho, e a principal celebração desta audiência geral é o fato da comemoração dos 15 anos, isto é, daquele 21 de junho em que o cardeal Giovani Battista Montini foi eleito sucessor de São Pedro com o nome de Paulo VI. Esta circunstância causou uma imensa alegria naquele enorme auditório de todas as línguas: através de seus intérpretes, manifestaram o seu afeto, a sua oração, a sua adesão, ao sucessor de São Pedro. O Papa, respondendo a essa explosão de amor, disse que a eleição que se comemora para ele significa uma doação absoluta ao povo de Deus. Em nome desta doação, a sua mensagem inspira-se num ofício que é o típico dos pontífices através da história: tornar visível a beleza da Igreja apesar das aparências humanas e das imperfeições pessoais dos pontífices. Em especial ele se referia à grande missão da Igreja de semear entre os homens unidade, paz e felicidade em Cristo. [...]
     Quando chegou o nosso turno, entramos na saleta onde estava o Papa, que foi saudado por nós com aquela emoção que apenas momentos assim podem proporcionar. O Papa pediu para que sentássemos ao seu lado, dos dois lados, e dirigindo-se particularmente a mim, apertou a minha mão direita segurando-a entre as suas e também eu apertei com as minhas duas mãos a mão do Papa. [...] E, segurando minhas mãos daquele modo, falou-me demoradamente. É difícil para mim repetir palavra por palavra da sua longa mensagem, pois além de não ter sido esquemático, mas bastante cordial, aberto, generoso, a emoção daquele momento certamente não era adequada para que eu memorizasse tudo; porém as idéias dominantes das suas palavras foram estas: "Compreendo o seu difícil trabalho. É um trabalho que pode ser incompreendido e precisa de muita paciência e força. Sei muito bem que nem todos pensam como o senhor; é difícil, nas circunstâncias do seu país, ter uma tal unanimidade de pensamento; mas vai adiante com coragem, com paciência, com força, com esperança". Prometeu-me que rezaria muito por mim e pela minha diocese. Pediu-me para que cumprisse todos os esforços para a unidade. E se ele pudesse pessoalmente ser útil em alguma coisa, ele teria feito com prazer.
     Depois falou sobre o povo. Disse que o conhecia desde quando começara a trabalhar na Secretaria de Estado, há quase 50 anos, e é um povo generoso, trabalhador e que hoje sofre muito e busca as suas reivindicações. Disse-me que é preciso ajudá-lo, trabalhar a seu favor: jamais, porém com ódio e fomentando violências, mas com a base de um grande amor. É preciso fazer com que sintam o valor do seu sofrimento, pregar a paz, e fazer com que este povo saiba como o Papa lhe quer bem, como reza e trabalha por ele. [...] Garanti-lhe a minha firme adesão ao magistério da Igreja. E que, nas minhas denúncias sobre a situação violenta do país, sempre apelo à conversão e mostro-me cheio de compaixão para com os que sofrem, com as famílias das vítimas, e, do mesmo modo em que denuncio o pecado, convido os pecadores à conversão. [...] Deixou-me a satisfação de uma confirmação na minha fé, no meu serviço, na minha alegria de trabalhar e de sofrer com Cristo, pela Igreja e pelo nosso povo. Creio que este único momento seria suficiente para pagar todos os esforços de vir a Roma: reconfortar-se na comunhão com o Papa, iluminar-se com as suas orientações. [...]
     Nesta audiência eu entreguei ao Santo Padre várias coisas [...]. Deixei também, num envelope fechado, um memorandum reservado. O memorandum deixado ao Santo Padre, uma breve carta, é uma comunicação de que já iniciei a visita aos vários dicastérios de Sua Santidade e para explicar-lhe como é difícil cumprir o ministério episcopal na situação do meu país, procurando ser fiel ao magistério atual da Igreja. [...] No memorandum digo também que, infelizmente, nas observações feitas por algumas secretarias sobre a minha conduta pastoral parece prevalecer um critério negativo: isso coincide exatamente com aquelas forças poderosas que lá, na minha arquidiocese, procuram frear e desacreditar o meu esforço apostólico. Todavia concluo dizendo ao Santo Padre que pode ter certeza da minha fidelidade a ele como sucessor de Pedro e da minha adesão incondicionada ao seu magistério; pois exatamente nesta fidelidade e nesta adesão encontrei o segredo e a garantia de caminhar com o meu rebanho seguindo o Espírito do Senhor.

Quarta-feira 28

     Hoje como eu não tinha compromissos especiais, dediquei a manhã para participar novamente da audiência geral do Santo Padre, anônimo entre as pessoas. Gostei muito de me sentir como um daqueles cristãos que, vindos de várias nações do mundo, esperam com tanta ânsia para ver o Papa. [...]
     Antes da chegada do Papa, ouviam-se cantos em todas as línguas e, à chegada do Papa, a explosão dos aplausos foi grande. O Papa falou de São Pedro, do seu túmulo, da sua Basílica, e do fato que todos nós cristãos nos encontramos, neste lugar, muito próximos à fortaleza fundamental da Igreja. Tinha comigo alguns objetos comprados como lembrança com a bênção do Santo Padre. À tarde, [...] depois da visita da madre Llerena e da madre superiora geral das oblatas, fui a São Pedro enquanto estavam cantando as vésperas dos patronos São Pedro e São Paulo. Todos os dois são protetores de Roma. Também aqui o canto solene das vésperas, o clima de festa, a participação cosmopolita que enchia o coro da Basílica, despertaram em mim muitas recordações. E ali, junto ao túmulo de São Pedro, rezei com o Credo dos Apóstolos, pedindo ao Senhor a fidelidade e a clareza para crer e pregar a mesma fé do apóstolo São Pedro.
     À noite, o nosso passeio noturno, que fazemos com o padre Juan Bosco Estrada, levou-nos uma vez mais até a Praça São Pedro lembrando as muitas coisas históricas que evocam o nome de Pedro e de Paulo em Roma.

Quinta-feira 29

     Preparação da viagem de volta. Visita a São Pedro. A missa solene da manhã é impressionante, muita gente entra e sai e lota a praça e as ruas adjacentes: uma verdadeira festa dos padroeiros, mas com um caráter universal. Como em nosso país as festas dos padroeiros são uma ocasião de encontro para muita gente de todos as regiões e cidades vizinhas, assim esta festa de São Pedro é ecumênica. Em vez de regiões e cidades, aqui vemos gente de todas as nações do mundo. Mas o espírito é o mesmo: uma festa popular, uma festa alegre, inspirada pela fé e pela esperança cristã; vende-se, compra-se, um vaivém de gente, uma grande alegria; é o resultado de estar em contato com aqueles heróis que já são vencedores e reinam na eternidade, enquanto nós peregrinamos esforçando-nos para imitar seus exemplos.
     À noite, saída para o aeroporto e volta ao meu país. Apesar de estar voltando à minha pátria, já sinto a nostalgia por estar deixando Roma. Roma é a casa justa para os que têm fé e sentido de Igreja. Roma é a pátria de todos os cristãos. Há o Papa, que é o verdadeiro pai de todos. Senti-o muito próximo a mim; parto com muita gratidão a ele, que o coração, a fé, o espírito continuam a alimentar-se desta rocha, onde a unidade da Igreja é palpável.
     Amanhã, dia 30 de junho, XV aniversário da coroação do papa. Nós estaremos ocupados com a viagem, com a chegada à pátria, em desfazer a bagagem etc. Mas Roma será sempre, para os nossos corações, mãe, mestra, pátria.

 

Maio de 1979

 

Quinta-feira 3

     Fiz uma visita, numa tarde realmente primaveril, à igreja dos Doze Apóstolos onde se encontra, sob o altar da confissão, o túmulo dos apóstolos São Filipe e São Tiago, o Menor, cuja festa litúrgica é celebrada hoje, 3 de maio.
     Esquecia-me de dizer que esta manhã fui novamente à Basílica de São Pedro e, junto aos altares, que amo muito, de São Pedro e dos seus sucessores deste século, pedi insistentemente o dom da fidelidade à minha fé cristã e a coragem, se fosse preciso, de morrer como morreram todos estes mártires ou de viver consagrando a minha vida do mesmo modo como consagraram estes modernos sucessores de Pedro. Impressionou-me, mais do que todos os outros túmulos, a simplicidade do túmulo do Papa Paulo VI.

Sexta-feira 4

     Preocupado com o compromisso mais importante da minha visita a Roma [...], fui novamente à prefeitura da casa pontifícia para acelerar a concessão da audiência com o Santo Padre. [...] Preocupa-me muito este comportamento para com um pastor de uma diocese, pois há muito tempo eu tinha solicitado a audiência e deixaram passar tanto tempo sem dar-me qualquer resposta; temo até mesmo que esta audiência não me venha concedida, porque há muitos bispos em visita ad limina e também são usados outros critérios para dar a precedência a outros pedidos. Confiei tudo nas mãos de Deus dizendo-lhe que, da minha parte, procurei fazer todo o possível e que, apesar de tudo, creio e amo a Santa Igreja e serei sempre fiel, com a sua ajuda, à Santa Sé, ao magistério do Papa [...].

Segunda-feira 7

     Amanhecia quando terminei de preparar os documentos que quero entregar na audiência com o Santo Padre. Tratam-se de quatro relatórios de comissões estrangeiras que vieram a El Salvador para estudar a situação do país. São documentos que se referem à solidariedade, à denúncia, e também à minha candidatura ao prêmio Nobel, juntos com outros que recebi depois da visita apostólica de Dom Quarracino (o bispo argentino que o Vaticano enviara em missão a El Salvador como visitador apostólico, ndr), como uma ultimação desta visita. Entrego-lhe também a carta escrita em novembro, que duvido não lhe tenha sido entregue. Pouco depois do meio-dia, fui recebido em audiência privada pelo Santo Padre. Estava sentado na sua escrivaninha e ofereceu-me uma cadeira. Pediu para que eu recolocasse o solidéu que eu tinha tirado e o tinha em mãos. Iniciou perguntando-me sobre a situação do país. Com cortesia sugeri-lhe para que controlasse no memorandum que lhe entreguei e ele aceitou de boa vontade. [...] Depois que lhe entreguei, com uma breve explicação, as sete pastas, o Papa começou a fazer comentários [...] Recomendou muito equilíbrio e prudência, principalmente ao fazer as denúncias concretas: disse que é melhor deter-se somente aos princípios, porque corre-se o risco de cair em erros ou equívocos quando se fazem denúncias concretas. Expliquei-lhe (e ele me deu razão) que há situações, como por exemplo o caso do padre Octavio (um sacerdote assassinado por um esquadrão da morte, ndr) em que é preciso ser muito concreto pois a injustiça e a violência foram muito concretas. Lembrou-me da situação na Polônia onde teve de enfrentar um governo não católico e, naquelas circunstâncias, era preciso fazer com que a Igreja crescesse, apesar das dificuldades. Deu muita importância à unidade do episcopado. Lembrando-se mais uma vez do tempo em que desenvolvia a sua atividade pastoral na Polônia, disse que esse era o problema principal, manter a unidade dos bispos. Disse-lhe que também para mim esse é o meu maior desejo, mas que a união não pode ser simulada, mas deve-se basear no Evangelho e na verdade. Depois falou do relatório de Dom Quarracino sobre a visita apostólica: no relatório reconhece que a situação é muito delicada e recomendou, como solução para as deficiências pastorais, e para a falta de unidade entre os bispos, um administrador apostólico "sede plena".
     No final da audiência, que me deu a possibilidade de expressar-lhe meus pensamentos, convidou-me para tirar uma fotografia juntos e presenteou-me com alguns objetos religiosos. Deixou de lado as pastas para continuar a série de audiências que ainda faltavam e eu saí satisfeito por este encontro, mas preocupado pelo fato de que evidentemente as informações negativas sobre a minha pastoral têm as suas influências; mesmo se depois lembrei-me bem de que ele me recomendou 'audácia e coragem, mas, ao mesmo tempo, medidas com prudência e um necessário equilíbrio'.

Terça-feira 8

     Fui diretamente para a Praça São Pedro para aconselhar-me com os grandes pontífices que repousam nas criptas do Vaticano e que inspiraram e orientaram de maneira extraordinária a minha vida. Queria ter um momento de reflexão antes de ir falar de coisas muito importantes na Congregação para os Bispos que o cardeal Baggio preside. [...]
     A conversa com o cardeal Baggio foi muito cordial [...] Ele também se referiu à visita apostólica e à sugestão feita pelo Papa na sua conversa do dia anterior, isto é, a de ajeitar a situação com a nomeação de um administrador apostólico "sede plena"; mas o cardeal Baggio, analisando esta sugestão, a considerava pouco prática, pois não havia nenhum bispo, entre os atuais, capaz de ser o administrador apostólico que concordasse comigo. [...] Falei sobre os relatórios entregues ao Papa, que são imparciais e mostram uma situação de verdadeira perseguição para com a Igreja. Em particular me referia ao relatório da OEA e à sua insistente recomendação feita ao governo de prevenir a sistemática perseguição da Igreja Católica na sua missão evangelizadora. [...] Na saída encontrei providencialmente Dom De Nicolò, um grande amigo [...] Disse para que eu tivesse muito cuidado em não ter uma reação muito clamorosa, pois provavelmente, quando sugeriram esta idéia do administrador apostólico, o Santo Padre e o cardeal Baggio poderiam estar querendo conhecer a minha reação: e uma minha reação negativa poderia complicar tudo. [...]

Quarta-feira 9

     Fui visitar Monsenhor Pironio, que me acolheu de um modo tão fraterno e cordial que somente este encontro teria sido suficiente para cobrir-me de conforto e coragem. Expus-lhe com confidência a minha situação tanto na minha arquidiocese quanto na Santa Sé. Abriu-me seu coração, dizendo-me aquilo que também ele é obrigado a sofrer, como sente um profundo sofrimento pelos problemas da América Latina que não são compreendidos completamente pelo ministro supremo da Igreja. [...] E acrescentou: "A pior coisa que você pode fazer é se desencorajar. Coragem, Romero!" repetiu muitas vezes. Eu lhe agradeci também pelas respostas a outras dúvidas colocadas nesta longa e fraterna conversa, e depois fui embora com o coração cheio de novas forças adquiridas pela minha viagem a Roma.
     [...] Depois fui até a Cúria Geral dos Jesuítas, onde o bom padre Juan Bosco [...] teve a gentileza de telefonar, para El Salvador, a Dom Urioste, com o qual entabulamos o diálogo que gravamos para transmitir na Ysax (a emissora radiofônica diocesana, ndr). Falou-me sobre a difícil situação de violência no país. O fato mais grave era o choque entre o Bloco Popular Revolucionário e os corpos de segurança nas proximidades da Catedral. Ele disse que justamente na Catedral de San Salvador foram colocados nove cadáveres de pessoas assassinadas naquela circunstância. [...] Depois do telefonema com as informações que Dom Urioste me dera, aplicando as minhas intenções de oração à situação trágica de hoje na Catedral de San Salvador, fui fazer a última visita à Basílica de São Pedro. Ao lado do túmulo de São Pio X rezei intensamente, dirigindo-me aos meus intercessores simbolizados principalmente pelos túmulos de São Pedro e dos últimos Papas.

 

Janeiro de 1980

 

Segunda-feira 28

     Perto das nove horas, depois de uma escala em Madri, partimos novamente para o último trecho até Roma. Sentia a mesma emoção de sempre. Com efeito, Roma para mim significa a volta ao berço, à casa, à fonte, ao coração, ao cérebro da nossa Igreja. Pedi ao Senhor que me conserve esta fé e esta adesão àquela Roma que Cristo escolheu como sede do pastor universal, o papa. [...] A nossa primeira visita, depois do almoço, foi à Basílica de São Pedro onde repercorri as etapas de que sempre gostei muito, a visita ao Santíssimo, a visita ao túmulo do apóstolo Pedro, ao túmulo de São Pio X e aos túmulos dos papas: aqui fiquei muito emocionado por poder rezar próximo ao túmulo de Paulo VI, de quem recordei tantas coisas sobre conversas que tivemos, quando tive a honra nas visitas precedentes de ser admitido privadamente à sua presença.

Quarta-feira 30

     Indo ao encontro com Dom Pironio, passei pela Secretaria de Estado para garantir, antes de tudo, a possibilidade de participar da audiência geral com o Santo Padre. [...] Depois pude falar com o cardeal Pironio, numa visita muito breve, mas de muito encorajamento. Disse-me que ele mesmo queria me ver para me comunicar com alegria que a visita do cardeal Lorscheider tinha sido muito positiva e que o próprio Papa tinha recebido um relatório muito bom sobre o meu trabalho. O cardeal Lorscheider tinha dito ao cardeal Pironio que em El Salvador eu tenho razão, que a situação é muito difícil, e que eu via claramente as coisas e o papel da Igreja e que é preciso me ajudar. Suponho que esta seja uma síntese do relatório feito pelo cardeal Lorscheider sobre a sua viagem a El Salvador. Agradeci muito ao cardeal Pironio e até mesmo o encorajei, quando me disse que também ele tinha sofrido muito, por causa do seu esforço em favor dos povos da América Latina, e que me entendia muito bem. Citou-me uma frase do Evangelho à qual ele dá uma particular explicação: "Não temais os que matam o corpo, mas não podem fazer nada ao espírito". Ele a interpreta no sentido de que, se os que matam o corpo são terríveis, certamente são mais terríveis os que atingem o espírito, caluniando, difamando, destruindo uma pessoa, e pensa que seja exatamente este o meu martírio, até mesmo dentro da Igreja, e que devo ter força.
     [...] O discurso de Sua Santidade na audiência geral desta quarta-feira 30 de janeiro foi a continuação da meditação sobre o Gênesis, que está desenvolvendo nestas audiências. [...] Uma meditação muito bonita, mas também muito profunda, e acho que seja difícil para muita gente entender. Alguém me disse que o Papa, quando inicia seu relatório com o povo, ele logo consegue se comunicar, com as suas saudações pessoais, mas que durante o discurso tem-se uma sensação de distância, uma espécie de incompreensão. É uma pena, porque este é um momento em que as pessoas estão muito atentas e qualquer idéia, por mais simples que seja, uma vez compreendida, pode fazer um grande bem aos presentes. No final da audiência chamou os bispos para abençoar as pessoas junto com ele. Tive a alegria de me encontrar diretamente à sua direita e em seguida, enquanto nós bispos cumprimentávamos o Papa, disse-me que depois da audiência queria falar justamente comigo. [...] Disse-me que "compreendia perfeitamente o quanto era difícil a situação política da minha pátria e que o preocupava o papel da Igreja; devíamos levar em conta não apenas a defesa da justiça social e do amor aos pobres, mas também do possível resultado de um esforço reivindicatório popular de esquerda, um resultado que pode se tornar, também esse, negativo para a Igreja". Eu respondi-lhe: "Santo Padre, este é justamente o equilíbrio que procuro conservar, porque por um lado defendo a justiça social, os direitos humanos, o amor ao pobre, e por outro me preocupo sempre com o papel da Igreja, e em evitar que, para defender estes direitos humanos, caiamos depois nos braços de ideologias que destroem os sentimentos e os valores humanos". [...] Senti que o Papa concordava com o que digo e, no final, abraçou-me muito fraternamente e disse-me que reza todos os dias para El Salvador.

Quinta-feira 31

     Fui até a Secretaria de Estado, onde tinha um encontro com o cardeal Casaroli. [...] Revelou-me que o embaixador dos Estados Unidos tinha vindo visitá-lo, muito preocupado, pensando que eu estivesse numa linha revolucionária popular, enquanto os Estados Unidos apoiam o governo da democracia cristã. Esclareci ao senhor cardeal que não se trata de uma opção política, mas apenas do esforço de procurar uma solução segundo justiça aos problemas do meu país. Disse-me que não queria insistir sobre este ponto, pois a visita do embaixador não tinha caráter oficial e que, afinal das contas, a Igreja deve agir não para agradar as potências da terra, mas segundo a sua fé no Evangelho e a consciência que deriva disso. O cardeal também mostrou-se preocupado pelo fato de que a defesa dos direitos humanos e as reivindicações populares, não consigam constituir uma espécie de hipoteca da Igreja e dos sentimentos cristãos diante das ideologias. Mas expliquei-lhe que, como disse ontem ao Papa, eu também me preocupava em pregar a justiça social, a defesa dos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, não deixava nunca de alertar as forças populares, que lutavam pelas suas reivindicações, do perigo de cair em ideologias estranhas. Expliquei-lhe também que não podemos falar de anticomunismo, pois assim teriam nos considerado cúmplices das injustiças dos ricos, que falam de anticomunismo, mas apenas para defender seus próprios interesses materiais e não realmente para defender os princípios cristãos. Notei que o cardeal ficou satisfeito com a nossa conversa. No final também garantiu que reza muito por El Salvador.

 

Trechos extraídos do Diario de Oscar Romero,
publicado na Itália pela Ed. La Meridiana